Remar CONTRA a maré!
Chegava-se à escola de manhã e dali a pouco o cheiro a feijão cozido que, seria posteriormente passado e enriquecido com arroz numa bela sopa densa, enchia o ar.
No refeitório ninguém passava a sopa, nem se furtava antes, à colher de óleo fígado de bacalhau. Uma bomba aquele "tónico!" Que primeiro se estranhava, mas rápido entranhava e não se falava mais nisso.
Eram as vitaminas da altura. E as sopas de cavalo cansado ao pequeno-almoço, para alguns, afugentavam-lhes o frio dos quilómetros andados até à escola, entre o griso; aonde chegavam sempre antes de tocado o sino da entrada. De pequenino se torcia o pepino e Salazar, a bandeira, como a cruz de Cristo, zelavam lado a lado para que dali saíssem portugueses de primeira. Rapazes e meninas!
Eles para liderar. Elas para terem na vida deles o mesmo papel das sopas de cavalo cansado. Do óleo fígado de bacalhau e pouco mais. A sopa de feijão com arroz, entretanto levava penca. Ao caldo verde, na vez de farinha de milho, começou a juntar-se batata. Em puré! Sem nunca lhe faltar o belo fio de azeite a rodela de enchido curado na adega.
No amanhecer da "rebelião" feminina Maria de Lourdes Modesto escreveria a Bíblia da Cozinha. A Crónica Feminina ditava ainda a moda, não se esquecendo nas entrelinhas, de zelar pelo bom comportamento da mulher.
Daí, até cá, foi um longo caminho ao griso para as meninas... sem vitaminas e com pouco chá. Chegarem aonde chegaram, pressupôs-lhes engolir muito, além, óleo fígado de bacalhau. Mas aqui estamos! Fazemo-nos ouvir.
Longe os tempos do recreio! A divisão em lado masculino e feminino. A imagem de Salazar, da bandeira e da cruz. O hino nacional cantado por muitos, a uma só voz!
Lembrei-me do óleo e do peixe... da faina para o capturar. Dos que morreram nas águas geladas do norte da Europa. Das mulheres que os esperavam na praia vestidas de negro, enfiadas em capas, da cabeça aos pés. Das que nos refeitórios, mexiam tachos da sua altura, cheios de sopa de feijão com arroz.
Da fome que havia e de uma sardinha chegar para cinco. Da pobreza envergonhada que ainda há...
Lembrei-me da Prisão de Caxias. Do Tarrafal. E do Ultramar. De tudo e de mais... a que não queremos voltar.
De como é bom levar o filho à escola e vê-lo partilhar o chão em igualdade de direito, com a filha de outro casal. Hetero, ou não. Ficar a apreciar uma roda em que ciganos, pretos, brancos e crianças de outras paragens, não precisam de falar a mesma língua para se entenderem.
Lembrei-me... a poucos dias do aniversário de Auschwitz que um político no meu país, respondeu ontem em alemão, a um jornalista. Ouvi outro ameaçar "ir atrás" de quem legitimamente venceu.
E martelo na mesma tecla quantas vezes for; em plena pandemia, assisti à horda desenfreada que gritava (sem máscara)... Liberal! Liberal!
"A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro"
Herbert Spencer