A Sério?!
Enquanto arrumava a cozinha, por curiosidade, ouvi a entrevista do Marco Paulo. A certa altura ouvi-o dizer quando interpelado pelo Daniel Oliveira, sobre memórias gratas que guardava, adorar e recordar com carinho os Natais no Minho. Isto remeteu-me para o que ele disse, do "haver muito pouco, na altura, do pai dele ser muito rígido, mas um bom pai", no entanto, as memórias que afirmava ter desse tempo, eram as mais gratas.
Nasci na cidade, mas passei muito tempo no norte, no litoral, onde também havia família e ouvia muitos relatos da minha avó materna. Do que retenho da vida na aldeia e nas vilas piscatórias antigamente e às vezes, em certos sítios na cidade, não havia água corrente, nem electricidade. O que se utilizava mais amiúde era a lenha. Os fogareiros e candeeiros a petróleo As lamparinas e candeias, as velas. E poupava-se tudo ao máximo! Fósforos, petróleo, azeite, velas. As casas eram geralmente muito pequenas, habitadas por famílias numerosas, mal construídas, sem grandes preocupações com isolamento. Era habitual não existirem casas de banho, os móveis eram poucos, tal como as roupas e o calçado que passava de uns irmãos, para os outros, ocasionalmente, entre primos. Tal como os livros.
A fruta e os vegetais eram os da estação. Fora dela não se encontrava como hoje. Não havia carne e peixe em abundância. Este era trazido em canastras por mulheres que vendiam na rua, ou passavam à porta das freguesas fixas. Constava basicamente de sardinhas e pouca coisa além. À carne mais refinada, nem todos chegavam. Quem podia, tinha criação/capoeiras. O leite também era vendido de porta em porta. As pessoas compravam muito pouco de cada vez; meio quilo de massa, de arroz. Um quarteirão de azeite, *obviamente e após reparo em comentários recebidos, a palavra quarteirão não se aplica à medida de líquidos. Peço desculpa pela minha confusão ao escrever "apressada" e devido ao muito tempo passado, sobre os factos, dez tostões de cevada.
Para a escola muitos dos alunos iam descalços, sem pequeno-almoço. Ou com umas "sopas de cavalo cansado" no bucho, com roupas puídas, o cabelo por pentear, a cara por lavar e a casa de banho era debaixo da vinha, do milho, das couves, nos pomares. O papel, as folhas... Aos miúdos ensinavam-nos a trabalhar, pastar e ordenhar o gado, acarretar água e lenha, ir à venda, onde se encontrava de tudo um pouco e fazer tudo que lhes mandavam sem abrir o bico. O respeito e obediência aos mais velhos era obrigatório! Tal como pedir a bênção, ou para sair da mesa. O trabalho na lavoura e a ajuda à família vinha antes da escola!
Os professores eram considerados. Mesmo depois de umas reguadas, uma ou outra "ponteirada" na cabeça. Às vezes um estalo.
Havia a roupa para o domingo e a missa. Outra para a semana. No aniversário não havia bolo nem as festas que hoje se fazem. Os presentes eram raros. A existir, tratava-se de um brinquedo de lata, madeira e eram um luxo.
Os medicamentos eram ainda escassos, igualmente caros. A precisar mandar vir daqui, dali... Os médicos eram poucos! E não se lhes podia pagar. Recebiam alguns, em géneros (ovos, galinhas, batatas, vinho...) dos doentes, que sabiam não ter mais para lhes dar.
Havia mulheres que faziam de enfermeiras e de parteiras de outras mulheres. Raras que o eram, outras meras curiosas. Quando não se aconselhava o curandeiro(a) da zona. Normalmente, naquele tempo, era costume terem-se muitos filhos. Educação sobre o tema, zero! As mulheres casavam praticamente ignorantes sobre tudo. Negar-se a casar também podia ser um problema.
Tinha-se como "lei" quase, que as mulheres não precisavam instruir-se. Bastava-lhes saber cozer, bordar, tratar de uma casa e do marido, com a devida submissão a este: que, se chegasse a casa "já tocado", corresse-lhe mal o dia, em dia de jogo, o clube do coração perdesse, tinha liberdade para lhe distribuir uns tabefes! Como aos filhos e... nada de reclamações. A mulher não votava. Não opinava. Queria-se transparente, obediente e silenciosa.
A mulher que paria num dia, ao outro, estava a trabalhar! No campo. Ou no seu local de trabalho. Não havia fraldas. E as mulheres menstruadas, geralmente, usavam pequenas toalhas quando lhe apareciam as "regras/período", que lavavam e tornavam a usar. Os produtos de higiene resumiam-se aos rudimentares. Os de cuidados de "beleza..." só quem tivesse dinheiro para os comprar, ou mandar vir de fora.
Trabalhava-se de sol a sol. Não havia fins-de-semana, férias e se alguns dias de descanso se ganhavam, aproveitavam-se para trabalhar no campo. Arranjar o que era preciso para não ter de pagar a outros. A família inteira fazia a vindima, a desfolhada, malhava o centeio, o feijão, tratava da azeitona. E andava-se a pé! De umas freguesias para as outras, às vezes concelhos, distassem os quilómetros que fosse.
Os carros eram de quem tinha muito dinheiro. Das famílias nobres, dos políticos. De resto eram os dos bois que ajudavam no transporte de tudo. Não existiam reformas, nem subsídios de parto, férias, natal... nada!
Não se podia "falar". Reunir. Atrever a exigir. A interacção com países e pessoas de outras latitudes era, como ainda hoje muitos encaram vir, a conhecer "alguém", originário de Marte. Muito terá ficado por dizer, por pessoas mais velhas que eu. Que nasceram e viveram sempre no campo, com poucas hipóteses ou nenhumas sequer de ver o mar. Em tempos ainda mais exigentes.
E penso para comigo: Nunca vivemos como agora! Com tudo à mão, numa diversidade de exageros e caprichos diários. Sejam alimentares, educacionais e outros. Temos direitos. Vida à larga, um índice de desperdício descomunal. E gritamos que não chega.
A sério?!